Fotografia: António Ferreira
Tenho um Jardim onde quase todos os dias estou. É apenas um Jardim, mas para mim é mais do que isso, mais do que se vê e mais do que parece ser. É um Jardim estranho para quem o vê - costumam chamá-lo de Jardim Baguncento. A Razão pela qual o apelidam disso é porque tenho de tudo o que são flores e não-flores: Tulipas, Rosas Orquídeas, Violetas, Liliuns e também tenho tudo o que são ervas-daninhas. É estranho, mas também as trato com cuidado porque são parte de mim, porque como dentro de qualquer ser, estão contidas coisas boas e coisas más que são necessárias à vida.
Depois, mais para o centro do meu Belo Jardim, encontramos vários grupos de flores estranhas. São Raras essas, são incomuns e desconhecidas para os outros, mas para mim são como se as conhecesse desde que nasci. Nasceram todas assim que descobri o meu Jardim e cada vez tão maiores. São lindas e têm um aroma maravilhoso. Junto delas nasceram também várias ervas-daninhas, mas deixo-as lá, porque não estragam, apenas as fazem crescer mais. A essas flores chamo Família, Amigos e Deus. São nomes maravilhosos, é como se já soubesse o que lhes chamar. E elas gostaram, gostaram tanto que quando passo por elas, ficam viradas para mim como se tivessem olhos grandes e os fixassem em mim, penetrando a minha pele, a minha carne e descobrindo a minha essência. Sabem quase tudo de mim, quase porque eu também não me abro muito a elas, mas elas entendem e não ficam chateadas, porque eu as amo e elas a mim.
Mas depois, vêm o meu maior tesouro. Está mesmo no meio do Jardim, onde todas a luz bate, onde toda a água teima a escorrer. É uma flor linda, tem todas as cores e ao mesmo tempo não tem nenhuma, e às vezes ainda toma a cor preta, branca e até cinzenta. É esquisita, mas é perfeita. Perfeita nos meus olhos, mesmo não sabendo o que é o perfeito - penso que perfeito é algo celestial, angelical e divinal, mas são coisas que existem para lá dos humanos e da nossa compreensão. É enorme, simplesmente grande e completa, mas ao mesmo tempo parece sempre precisar de alguma coisa. Acho que sente algo de falta que já teve e agora precisa. É tão bela, tão mágica e tão... tão perigosa e venenosa. Pode ser a mais linda flor do meu Jardim, mas como qualquer flor, esta tem também os seus quês. Tem espinhos grossos e pontiagudos, o que torna impossível a simples tarefa de a tocar; são tão afiados os espinhos que até os olhos fere. Quando tento cheirá-la, rapidamente me tenho de afastar: longe, tem um aroma, um tom olfactivo fora do comum, até parece não existir. Atrai qualquer um para perto de si, mas quando se chegam, rapidamente liberta um veneno para repelir quem quer que seja, até mesmo Eu, o Seu Criador. Conheço-a tão bem como me conheço a mim, chego até a pensar que sou eu que estou ali, mas jamais permitiria ter espinhos e lançar veneno. Tal como ela me conhece a mim. Ela já me disse o seu nome, mas pediu-me para o guardar. Não fui eu que escolhi o nome, nem estava dentro de mim sequer - ela é que o decidiu e eu não reclamei sequer, porque o seu nome condizia com tudo aquilo que ela era, como se já estivesse pré-detalhado para se chamar assim. Pergunto-me como criei algo assim, majestoso e mortal, tal como as Sereias das histórias de encantar, que deliciavam os marinheiros e depois matavam-nos. Tu não matas, mas magoas. E pareces não te importar, pois tu alimentas-te da minha dor, do meu sofrimento e das minhas lágrimas. És egoísta, mas mesmo assim compreendes-me e quando sugas isso tudo, deixas-me feliz... Mas também me queres triste para poderes crescer e ficares maior. Até à tua volta criaste uma barreira de ervas-daninhas, para me dificultar a chegada até ti. Mas eu não desespero minha querida Flor, não porque aprendi que não se ama só dizendo, não se ama dando carinho ou não se ama dando afecto. O amor é todo o mesmo, mas expressa-se de forma diferente e é esse amor que eu demonstro, de maneiras diferentes, à minha maneira que te vai libertar das amarras que te escondem, vai-te retirar os espinhos e vai-te deixar toda só para mim, para eu te poder tocar mais uma vez, da mesma maneira que te tocava antes de te tornares fria e completamente independente de mim. Mentira, não és independente de mim, porque ainda necessitas de mim para te alimentar. E eu alimento-te todos os dias e também a minha esperança de te pegar pela tua raíz, e abraçar-te como se não houvesse um fim da vida. As outras plantas chamam-me louco e eu ignoro, simplesmente porque é isso que eu sou, à excepção de Deus, que me trata com carinho e dá-me o seu amor para eu o poder trazer até ti. Lembra-te, minha linda Flor, um dia chegarei a ti e vou-te abraçar e acariciar, vou-te tocar para te alimentares da minha alegria e alimentares-me tu disso. Irás até dar frutos e iremos dividi-los os dois, iremos dividi-los para outros poderem colhê-los e plantar depois as suas sementes. Quando eu morrer, morres também, mesmo que estejas aí sem mim para te tocar, sim, porque eu faço parte de ti e tu de mim. Lembra-te, eu sou tu e tu és eu, e há um nós que é nosso e é guardado dentro de mim e de ti. Só nós o sabemos e por isso o guardamos com carinho para mais tarde ser libertado. Espero por esse dia e lembra-te, eu vou conseguir, não por mim, não por ti minha Flor, mas por Nós.
Só por isto o meu Jardim já é lindo não é?